Isabella Henriques*
Sou
da geração que assistiu muita programação infantil de qualidade na tevê
aberta. Assistia o Bambalalão da TV Cultura, o Daniel Azulai, na
Bandeirantes, e as primeiras edições do Sítio do Pica-pau Amarelo, na
Globo.
Hoje sinto falta da programação infantil na tevê aberta, não
apenas por uma questão familiar, mas porque meu trabalho me faz refletir
muito sobre esse tema, na medida que estou à frente da área de Advocacy
do Alana, organização sem fins lucrativos que tem como missão Honrar a
criança.
Justamente por trabalhar com o tema da infância e da garantia e
promoção dos direitos da criança, acredito que o fim da programação
infantil na tevê aberta é, não só uma tristeza e uma verdadeira lástima,
mas inconstitucional, ou seja, contraria a mais alta norma na
hierarquia das nossas leis, a Constituição Federal.
No seu artigo 221, a Constituição diz que é obrigação da
radiodifusão no país promover conteúdo preferencialmente com finalidade
educativa, artística, cultural e informativa. Vale lembrar que as tevês
abertas são concessões do Poder Público, o qual permitiu que empresas
privadas, sob determinadas condições, administrassem esse espectro
comunicacional com a precípua finalidade de promover um serviço útil e
adequado à população para a garantia do seu direito à comunicação.
Infelizmente não é isso que vemos diariamente na tevê aberta. Não
só a expressiva diminuição da programação infantil é uma ilegalidade
rotineira. Também o são os programas policialescos que reincidentemente
violam direitos humanos. Assim como a quase inexistente
representatividade da população nessa que é uma mídia social de massa.
Mas esses e outros temas deixarei para um outro dia. Hoje a conversa é
mesmo sobre a programação infantil.
É comum atribuir-se esse declínio da programação infantil na tevê
aberta, chegando-se mesmo a falar no seu fim, à discussão sobre a
publicidade infantil – aquela que é dirigida às crianças e seria a única
fonte de financiamento da programação infantil. Nesse sentido não são
poucos que dizem ser a atuação de organizações da sociedade civil no
sentido de apoiar a proibição da publicidade infantil, assim como a
Resolução 163/2014 do Conanda – Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente, as grandes causadoras desse mal.
Mas, certamente, não é essa a verdadeira razão de hoje termos tão
poucas opções de programação infantil na tevê aberta. Fosse isso não
haveria programação televisiva infantil em lugar algum porque a lei que
rege a tevê fechada infantil é a mesma que se aplica à tevê aberta no
que se refere à publicidade infantil e, todos sabemos, a tevê fechada
está repleta de programação infantil nesses canais.
O que acontece é uma escolha empresarial decorrente da diferença
dos negócios. A tevê aberta vive dos índices de audiência, quanto maior o
número de pessoas assistindo à programação, melhor para o negócio. A
tevê fechada, por sua vez, vive da segmentação do público: nos canais
infantis quer a audiência infantil, nos canais jornalísticos quer a
audiência adulta, nos canais de esportes radicais, quer a audiência
jovem e assim por diante.
Para uma tevê aberta que quer alcançar o maior número possível de
telespectadores, fazer um programa direcionado ao público infantil vai
contra a lógica do negócio. Nesse raciocínio, do negócio, da
lucratividade, é melhor trocar a TV Globinho para crianças pelo Programa
da Fátima Bernardes que se propõe falar com crianças e também com os
jovens, os adultos e os idosos.
Mas, para não perder por completo o nicho dos infantis, visando o
bem do negócio, vale a pena ter um canal infantil para, como diriam os
velhos juristas, ao arrepio da lei, fazer muita publicidade infantil,
ganhar triplamente, pela assinatura, pela publicidade e pelo
licenciamento dos personagens próprios. Com isso, só continuam a
apresentar programação infantil na tevê aberta as empresas que não
possuem canais segmentados ou os canais estatais como a TV Brasil – cuja
programação infantil é maravilhosa e vale a pena conferir – e a TV
Cultura, nossa velha conhecida pelas incríveis produções nessa área.
É tudo pelo negócio. Pelo dinheiro. Não o dinheiro para fazer a
produção audiovisual infantil – que pode ser obtido de várias formas e
não só pela publicidade – mas é o dinheiro do lucro das empresas. E
nossas crianças, de novo, ao largo da lei, sem ter garantidos os seus
direitos consagrados na Constituição Federal, especialmente no citado
artigo 221 e no 227, que trata da sua absoluta prioridade. No fim das
contas, a proibição da publicidade infantil é só uma desculpa: a mesma
empresa que diz que precisa cumprir a lei e não pode mais fazer
publicidade infantil na tevê aberta o faz descaradamente na tevê
fechada.
A discussão sobre o tema da proibição do direcionamento de
publicidade a crianças não é nova, tem estado na agenda pública
brasileira da última década. Esteve nas manchetes dos principais jornais
brasileiros, foi pauta de incontáveis programas de debate, esteve no
centro de inúmeras audiências públicas no Congresso Nacional, em
discussões em universidades por todo o país. Objeto de uma avalanche de
trabalhos acadêmicos, pesquisas e até livros, foi tema da redação do
ENEM em 2014. A seu propósito, pesquisa realizada pelo DataFolha, no ano
passado, apurou que 60% da população brasileira é totalmente favorável
ao completo banimento da publicidade dirigida às crianças.
É por trabalhar no âmbito da discussão da publicidade infantil há
mais de 10 anos que eu asseguro, de forma categórica, que a proibição
da publicidade infantil anda ao lado da programação infantil de boa
qualidade televisiva no âmbito da lei. Ambas são garantidoras da
integridade psíquica e dos direitos das crianças.
Daí a importância de que falemos mais a respeito de ambas e que
passemos a exigir uma programação televisiva de qualidade para crianças
também na tevê aberta que fala diariamente com a quase totalidade das
milhões de crianças no país. Sem que, para isso, seja necessário
violar-se o direito das crianças de verem-se livres da publicidade
comercial.
*Isabella Henriques é advogada e diretora de Advocacy do
Instituto Alana. É mestre em Direitos Difusos pela PUC-SP e autora do
livro "Publicidade abusiva dirigida à criança" (Ed. Juruá).
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