Por:
Beatriz Saks*
Violências
das mais diferentes formas que crianças e adolescentes sofrem ao longo
da vida impactam, sim, na conformação e na manutenção de trajetórias
infracionais
Mais um relatório aponta em números uma situação há muito conhecida
no Brasil: o país mata seus jovens. Realizado no contexto da Resolução
da ONU - Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável, o estudo
foi elaborado pela Fundação Abrinq para analisar a condição atual de
crianças, adolescentes e jovens brasileiros, de forma a apoiar políticas
que poderão modificar a situação de marcada vulnerabilidade e violência
na qual a maior parte desse grupo vive.
O estudo aponta que, de cada seis pessoas mortas em 2015, uma tinha
até 19 anos de idade. Esse número mais que dobrou entre 1990 e 2015 - de
5.000 para 10,9 mil mortes. Especificamente em relação às mortes por
arma de fogo, crianças e adolescentes representam cerca de 20,7% do
total de vítimas. Ou seja, em 2015, uma em cada cinco pessoas mortas em
consequência de disparos de arma de fogo tinha menos de 19 anos, e eram,
em sua maioria, adolescentes acima dos 15 anos de idade.
O relatório traz outro dado conhecido: os atos infracionais cometidos
por adolescentes e jovens, em sua maioria, não são contra a vida. A
maior parte deles é qualificada como roubo (44,4% das infrações),
seguida pelo tráfico de drogas (6.350 ocorrências em âmbito nacional, ou
24,2% das infrações). Isso permitiria levantarmos a hipótese de que os
atos infracionais cometidos por eles promoveriam o acesso, ainda que
frágil e temporário, ao modo que mundialmente conhecemos de
pertencimento social: a aquisição de bens materiais e a possibilidade de
frequentar espaços sociais que aqueles com os quais nos identificamos
frequentam. Mesmo modo de viver, com diferentes formas de acesso.
Em entrevista por ocasião do lançamento do relatório, Heloisa
Oliveira, administradora-executiva da Fundação Abrinq, afirmou a
importância de tomarmos os indicadores associados à condição de
vulnerabilidade em articulação, uma vez que os adolescentes que cometem
atos infracionais (e, poderíamos acrescentar, que acessam o sistema de
Justiça) estão entre a população mais pobre e afetada pela falta de
acesso a direitos básicos – como saneamento básico e água potável. Se
não é determinante que aquele que sofre violações será, também, um
violador de direitos, o que as informações do relatório apontam, e as
experiências de trabalho que temos feito no Instituto Sou da Paz fazem
notar, é que, para crianças e adolescentes, as violências das mais
diferentes formas sofridas ao longo da vida, a desigualdade social
marcante e o não reconhecimento do valor de suas vidas impactam, sim, na
conformação e na manutenção de trajetórias infracionais.
Em relação às medidas socioeducativas, o relatório dá destaque a uma
espécie de afunilamento no tratamento oferecido aos jovens de
diferentes classes sociais, raça e gênero. E aponta, também, que, antes
que se determine uma relação causal entre pobreza e criminalidade, há
que se considerar renda e raça como fatores que tornam ainda mais
vulneráveis e estigmatizados determinados grupos de pessoas. Ou seja:
ser pobre e ser negro não leva à entrada do jovem no universo criminal,
mas esses fatores ampliam a condição de vulnerabilidade social. Tomados,
com frequência, pelo sistema de Justiça como indicadores de um
“potencial criminal” que estaria mais acentuadamente nesses adolescentes
do que nos brancos e pertencentes à classe média alta, esses fatores,
de acordo com o relatório, implicam um acesso desigual à Justiça e a
situações que promovem outras experiências de vida – mais saudáveis para
si e para suas comunidades.
Isso significa que uma rede de ações e determinados atores são mais
fortemente direcionados a atuar junto à população jovem, negra e pobre.
Podemos citar como exemplo a abordagem policial cotidiana a adolescentes
pobres e negros e a aplicação preferencial de medidas socioeducativas
de internação e semiliberdade (as únicas que significam a privação da
liberdade) a eles. A classificação de determinados adolescentes como
“suspeitos em potencial”, tão difundida na sociedade brasileira, se não
leva à execução do ato infracional, possui uma força simbólica que não
permite outras experiências. Ela soma-se, ainda, às condições
estruturais que, isoladas, produzem condições de vulnerabilidade: fome,
falta de moradia adequada, não acesso à educação escolar e ao trabalho
qualificado.
O Instituto Sou da Paz vem atuando há pelo menos dez anos com
infância e juventude em situação marcada de vulnerabilidade na cidade de
São Paulo. Há três deles, atua diretamente com adolescentes em
cumprimento de medidas socioeducativas e com profissionais que os
atendem. Os desafios que testemunhamos para o efetivo cumprimento da
medida socioeducativa são inúmeros – muitos deles apontados pela Abrinq.
Eles estão relacionados à responsabilização do adolescente, e, também,
ao que poderíamos descrever como seu desenvolvimento social.
Observamos que os adolescentes encontram dificuldades para transitar
no bairro e fora dele. Assim não conseguem ampliar seu repertório
cultural e de experiências desvinculadas ao universo criminal. A própria
comunidade tem medo e não consegue se relacionar com o jovem que passou
por medida socioeducativa de internação e, em muitos casos, o
cumprimento da medida é disputado com a maternidade, a paternidade ou o
emprego que precisam ser assumidos pelos adolescentes para sustento do
lar. É urgente fazer uso dos dados apresentados a fim de tornar ainda
mais clara esta fotografia sobre uma sociedade que, ao matar sua
juventude, elimina as chances de uma vida digna agora e no futuro.
Devemos tomar os dados em articulação a fim de se que saiba que somos
todos afetados por essa dura realidade, que pode e deve ser alterada.
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*Beatriz Saks é coordenadora de projetos da área de Prevenção da Violência do Instituto Sou da Paz.
[Fonte: Nexo Jornal]